Óleo de peixe e ômega 3: dá para confiar nessa relação?

Óleo de peixe e ômega 3: dá para confiar nessa relação?

  • Bruna Nascimento
  • Bruna Nascimento

O ÔMEGA 3 (W3) é um dos nutrientes que mais geram dúvidas quando o assunto é nutrição. Não é raro encontrar afirmações, não embasadas cientificamente, de que não é possível encontrar os ácidos graxos W3 (EPA e DHA) nos alimentos de origem vegetal e que necessitamos suplementar nossa alimentação com cápsulas de óleo de peixe.

Para tirar algumas dúvidas e discorrer sobre esse tema, convidamos a nutricionista e consultora em alimentação vegetariana e sustentável e coordenadora do departamento de saúde e nutrição da Sociedade Vegetariana Brasileira, Alessandra Luglio:

Os ácidos graxos Ômega 3 são considerados essenciais na dieta humana, pois nosso corpo não consegue sintetizá-los diretamente. A mais abundante maneira de se encontrar W3 na alimentação é na forma de ALA (ácido alfa linolênico), encontrado em alimentos como a linhaça, chia, soja, nozes, vegetais folhosos verdes escuros, entre outros. O ALA, através de processos bioquímicos e enzimáticos (elongases e dessaturases), é convertido em nosso corpo em EPA e DHA, ácidos graxos que reconhecidamente são importantes para nossa saúde neurológica e celular, além de, com controvérsias, para a saúde cardiovascular.

Os animais, especialmente os peixes gordurosos de águas frias e profundas, são fontes alimentares diretas de EPA e DHA, pois estes se alimentam de microalgas que os sintetizam ou secundariamente de zôoplanctons que se alimentam de algas. Ao consumir esses peixes, recebemos o aporte direto de EPA e DHA. Porém, como nosso corpo é capaz de sintetizar esses ácidos graxos a partir do ALA, encontrado nos alimentos de origem vegetal, não há necessidade de se consumir o ÔMEGA 3 de origem animal. Essencial para nós é consumir o ALA, independente da origem.

O Institute of Medicine (IOM), que propõe as diretrizes nutricionais, tem recomendação diária (DRI) para ALA e não para DHA e EPA, justamente por termos essa capacidade de sintetização. Existem inúmeros estudos que avaliam a nossa eficiência em converter o ALA em DHA e EPA; por isso, observamos que há menor respaldo científico nas recomendações de se valorizar o consumo de óleo de peixe, pois, neste caso, entregaríamos diretamente o DHA e EPA sem utilizar  a maestria do nosso metabolismo bioquímico de fazer essa conversão. Realmente, a conversão desses ácidos graxos não é tão eficiente, sendo que estudos sugerem que, de todo ALA consumido, convertemos em torno de 5 a 10% em EPA e aproximadamente 2,5% em DHA. Recentes revisões da literatura falam de conversões em torno de 21% para EPA e 9% para o DHA.

O que interfere nessas taxas de conversões são a idade, sexo, gestação e infância (nestas duas últimas situações, estudos demonstram maior taxa de conversão, devido à maior necessidade, comprovando a sabedoria da natureza), além de fatores não-nutricionais como o tabagismo, hipertensão, diabetes e síndrome metabólica, que comprovadamente diminuem as taxas de conversões.

Em se tratando de indivíduos saudáveis, um dos fatores que merecem maior atenção é, sem dúvida, o consumo excessivo de ácidos graxos ômega 6 na dieta moderna ocidental devido ao uso exagerado de óleos de sementes como girassol, algodão, milho, soja, entre outros. As enzimas que fazem parte da cascata bioquímica de conversão do ALA são as mesmas utilizadas para a conversão do W6 (LA), o que pode gerar uma competição e desequilibrar tal conversão.

A OMS/FAO recomenda um consumo de LA e ALA na proporção de 5:1, as DRIs do Canadá e Japão recomendam 4:1 e estudos recentes apresentados pelo NIH (National Institute of Health) sugerem que 4:1 até 2:1 uma segura e adequada proporção que garante o aporte de DHA eficiente através do ALA.

E quanto consumir de ALA para garantir, sem a necessidade de se consumir peixes e suplementos, o aporte seguro de EPA e DHA? O mesmo NIH sugere o consumo total de 2 a 3% das calorias diárias provenientes de LA e 1% de ALA. A Health Canada sugere 3% das calorias de LA e 0,5% de ALA.

De forma prática e aplicada à alimentação diária, usando a linhaça, podemos considerar o seguinte:

Em uma dieta de 2000 kcal 1,25% a 2,5% = 2,7g a 5,5g de ALA

2,7g de ALA = 1 col. de chá de óleo de linhaça ou 1 col. de sopa de sementes de linhaça.

Depois de levantarmos todas essas informações, é inevitável nos questionarmos: devemos realmente consumir suplementos à base de óleo de peixe? O “boom” que vimos nos últimos anos quanto à suplementação de ômega 3, em que qualquer indivíduo que visitasse um médico ou nutricionista saía com tal prescrição a tiracolo, teve como base a “suspeita” de que o DHA e EPA fossem importantes fatores de prevenção de doenças cardiovasculares. Porém, este ano, 2018, Cochrane publicou a grande revisão “Omega-3 fatty acids for the primary and secondary prevention of cardiovascular disease”, que analisou centenas de estudos com milhares de indivíduos e concluiu que não existem evidências que comprovem que a suplementação de óleo de peixe possa ter interferência positiva na saúde cardiovascular e, no entanto, o consumo de ALA (lembre-se, vegetal) apresenta ligeiras evidências de que sim.

Com relação às funções cognitivas e neurológicas, estudos ainda avaliarão possíveis e comprovadas evidências. Quem se beneficia mais com a venda de cápsulas de óleo de peixe? Nós, consumidores, ou a indústria que fatura milhões anuais com isso? Será que não seria mais óbvio, seguro, econômico e assertivo investir em uma alimentação natural, rica em nutrientes, que inclui diariamente frutas, verduras, legumes, grãos, sementes, castanhas, algas, cogumelos e tudo mais que a nossa mãe natureza nos oferece de forma íntegra e sinérgica, evitando alimentos que são, sim, comprovadamente inflamatórios e causadores das próprias doenças crônicas que o tal óleo de peixes supostamente preveniria? Acreditem, a Natureza é sábia e capaz! Nós somos a natureza!

Se você insiste em acreditar que precisa consumir óleo de peixe, vamos pensar de forma ética e responsável agora. Antes de tudo, é importante e essencial saber que esse óleo de peixe vem da pesca industrial. Grandes navios pesqueiros se lançam em alto mar e jogam no mar suas enormes redes de pesca de arrastão, um tipo de rede que vai lá embaixo, na base do oceano, chegando a ter quilômetros quadrados e capturam tudo que tem pela frente. Danificam o solo e vegetação marinha, pescam de forma não seletiva, ou seja, vem tudo: golfinhos, tubarões, tartarugas, peixinhos e peixões, bebês e adultos, essas redes de arrastão são responsáveis anualmente pela retirada de ¼ de toda a vida marinha dos oceanos. Segundo a última projeção da revista Science, se mantivermos a taxa de devastação marinha atual, em 2048 todas as espécies marinhas comestíveis estarão extintas. Esses peixes vivos são levados ao porão refrigerado dos navios e são mortos asfixiados e resfriados. Os peixes sem valor comercial são moídos e dessa “massa” é extraído o óleo de peixe. Portanto, consumir com consciência é fator primordial para que possamos ter responsabilidade por nossos próprios atos.

Outra questão, também muito sensata, é que a natureza é sábia e perfeita, portanto não colocaria um nutriente essencial para o ser humano, que é terrestre, exclusivamente em algas e peixes de águas salgadas profundas. Pensando em nossos ancestrais, que nunca teriam acesso a tais peixes, sem dúvidas sobreviveram, se desenvolveram e evoluíram através de outras fontes de EPA e DHA, que não esses peixes.

Referências:

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Graham C. Burdge, Stephen A. Wootton. Conversion of a-linolenic acid to eicosapentaenoic, docosapentaenoic and docosahexaenoic acids in young women. British Journal of Nutrition (2002), 88, 411–420

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